Sortilégio para aqueles que tornaram possível a lei de imigração

22 dezembro, 2023


>> por Paul B. Preciado

 

Este é um feitiço tecnoxamânico a ser realizado coletivamente durante as festividades sagradas e pagãs correspondentes à passagem das noites mais longas e dos dias mais escuros do ano, visando ao retorno da luz no hemisfério Norte. Esse feitiço é dedicado a todos aqueles e aquelas que redigiram a nova lei de imigração francesa, que votaram nela ou que, tendo se abstido de votar ou lutado para que ela fosse alterada, fizeram com que ela acontecesse no mundo real.

Que as fronteiras que vocês ergueram se fechem sobre vocês. Que as leis que vocês decretaram sejam aplicadas a vocês. Que a nacionalidade que possuem e reivindicam como se fosse um direito natural lhes seja retirada e que, em seu lugar, seja criado um cartão de “criminoso político” para cada um e cada uma de vocês, com seu nome e os nomes de seus progenitores, suas impressões digitais, seu sexo e sua foto.

Que vocês conheçam a repressão por toda a parte, e o acolhimento, em parte alguma. Que as condições de acolhimento vos sejam sempre restritas. Que nem a amizade, nem o casamento, nem a família possam vos garantir o direito de acolhimento. Que seus pedidos de autorização de residência sejam recusados em todos os lugares e para sempre.

Que as fronteiras que vocês ergueram se fechem sobre vocês. Que nem o dinheiro nem o poder vos sirvam a atravessá-las. Que vocês sejam sempre e em todo lugar deportados em nome da lei. Que seus direitos humanos mais elementares sejam ultrajados antes mesmo do seu nascimento e depois da sua morte. Que não haja possibilidade de reunificação familiar para você e seus entes queridos. Que onde quer que vocês vão, vocês sejam estrangeiros.

Que sua existência sobre a Terra seja considerada um crime, e que seus corpos vivos e vulneráveis, sua aparência, seu idioma e sua religião, sejam declarados graves ameaças à ordem pública. Que, onde quer que vocês vão, sua presença seja reconhecida como um crime de residência ilegal, punível com uma multa de 3.750 euros. Que cada encruzilhada se torne um posto de fronteira para vocês e que, a cada esquina, um policial possa tirar suas impressões digitais sem o seu consentimento.

Que na doença, não lhes socorra o direito ao cuidado. Que a assistência médica universal lhes seja recusada. Quando conheçam a fome, que aquelas e aqueles que se autoproclamam “cidadãos nacionais” tenham, por força da lei, o direito de privá-los do pão.

Que a polícia, a quem vocês deram poderes ilimitados, os persigam por becos escuros, onde todas as portas e janelas se fecharão em seus caminhos. Que seus peitos sejam esmagados por botas; seus olhos, arrancados por balas de borracha.

Que aquelas e aqueles que os amaldiçoam devido ao seu lugar de nascimento, à cor da sua pele, ao seu gênero, à sua sexualidade, à sua religião ou etnia, à sua situação econômica ou à sua formação profissional possam exercer sobre vocês, pela imposição de cotas, um direito de vida ou morte.

Que as fronteiras que vocês ergueram se fechem sobre vocês. E quando morrerem tentando atravessá-las, que seus nomes sejam esquecidos e que seus corpos, perdidos no fundo do mar, calcinados no deserto ou esquecidos em uma vala, nunca sejam encontrados, nem tenham direito a uma sepultura.

E depois de terem sido submetidos às leis de um mundo que vocês mesmos criaram, que suas fronteiras internas finalmente cedam. Que seus corações se abram e se tornem uma Arca de Noé cósmica na qual as almas de todos os mortos que vocês condenaram possam entrar sem impedimentos. Que os espíritos de Zyed Benna e Bouna Traoré, Mohamed Bendriss, Alhoussein Camara, Adama Traoré, Nael Merzouk e milhares de outros os possuam, habitem e mudem. E que, cheios do poder das vidas que tiraram, possam escutar o chamado da graça meteca e anarco-queer.

Pelo poder transformador dessa graça, que vocês possam ser totalmente diferentes do que são, pois o futuro do mundo depende da sua capacidade de mudar. Que vocês experimentem a alegria e a dor da empatia universal. Que seus corações, antes fechados, se sintam solidários com tudo o que até agora consideravam estrangeiro, estranho e criminoso. E ao sentir em seus corpos o universo inteiro como se fosse a sua própria carne, vocês chorem inconsolavelmente.

Que a pomba, cujas asas vocês cortaram, faça ninho em vocês, e devore todos os seus desejos de dominação e morte. Que a força do amor planetário expulse dos seus espíritos o fascista que os subjuga. Que o ditador que se apossou do Parlamento das suas almas seja destronado e que a liberdade reine em suas vidas. Por meio desse feitiço, e contra a sua ideologia e a sua vontade, apelamos à mutação dos seus desejos, sem qualquer reversibilidade possível, para o bem do planeta e de vocês mesmos.

Que tudo isso seja dito e feito em nome de James Baldwin e Audre Lorde, Frantz Fanon e Jean Genet, Aimé Césaire, Cherrie Moraga e Gloria Andalzúa, Leslie Feinberg e Marsha P. Johnson. Invocamos a força e o poder deles, sua compaixão e sensibilidade, para que sua transformação seja total e absoluta. Amém, e feliz solstício.


* Publicado originalmente em Libération: <https://www.liberation.fr/idees-et-debats/opinions/sortilege-a-celles-et-a-ceux-qui-ont-permis-la-loi-immigration-par-paul-b-preciado-20231222_UL67BGXNNNBRJEJA6UQOCOO2P4/>.

** Tradução de Murilo Duarte Costa Corrêa

Por onde começar a ler Guattari? 4 Rotas

07 dezembro, 2023

Nesse vídeo, eu te apresento quatro rotas de leitura que respondem à pergunta: por onde começar a ler Guattari? Psicoterapeuta institucional, ativista político e filósofo, Félix Guattari (1930-1992) foi um dos mais conhecidos pensadores do século XX, singularmente vinculado às trajetórias dos movimentos de maio de 1968. 

Conhecido por livros como o Anti-Édipo, Mil Platôs, O que é a Filosofia? (com Gilles Deleuze), Guattari foi por muito tempo tratado como um filósofo menor -- menorizado e minoritário face à obra conjunta com Deleuze. Mesmo no âmbito dos "Deleuze studies", Guattari não raro aparece como um pensador secundário, esquecido ou ofuscado. E todavia, de meado dos anos 2010 em diante Guattari conhece um renascimento, e se torna um teórico cada vez mais traduzido, lido, citado e discutido no pensamento contemporâneo, tanto ao lado de Deleuze e de outrxs -- com quem escrevia a quatro mãos (Negri, Bifo, Rolnik etc.) -- quanto em função de seu peso e importância próprios. 

O que torna Guattari especialmente inclassificável, e ao mesmo tempo o autor de uma obra em cujo labirinto é difícil orientar-se à primeira vista, é a profusão dos seus escritos, a inconvencialidade de seus conceitos, a transdisciplinariedade do seu modo de abordar e de formular problemas, e uma constante preocupação com o presente e com o que estamos nos tornando. 

Assim, tento apresentar neste vídeo quatro rotas de leitura para você começar a ler Guattari. Estou certo de que não são as únicas! Então, se você experimentou esses textos de alguma outra maneira, conta pra gente como foi o seu contato e como se desenvolveu a sua experiência! Conhece outros comentadores bacanas que gostaria de sugerir? Deixe aqui nos comentários algumas outras ideias sobre como entrar na obra de um dos maiores filósofos franceses contemporâneos! 

*Academia.Edu (Textos & Livros) http://uepg.academia.edu/MuriloCorrêa

Instituições, corpos, ecologias...

27 novembro, 2023


Este vídeo é o corte da conferência "Para pensar uma jurisprudência dos corpos". Ela foi realizada em 23/11/2023 no âmbito do III Colóquio Internacional Miroslav Milovic ("Direito como potência"), na Universidade de Brasília (UnB), transmitido ao vivo às 19h00. 

A mesa "Diálogos contemporâneos" contou ainda com as conferências dos Professores Cassiana Stephan (UFPR) e Paulo Irineu (IFTM), e foi mediada pelo Professor Felipe Rodolfo (UFMT). A íntegra pode ser conferida no Canal do @grupodepesquisamiroslavmilovic, no link a seguir: https://www.youtube.com/live/AnC57jXP... 

 

 * Textos & Livros http://uepg.academia.edu/MuriloCorrêa

Deleuze: una jurisprudencia sin jueces

 

 
Este video es una selección de la presentación hecha en el 16 de noviembre de 2023 en el marco de los "Encuentros de Teoría Política y Social" organziados por la Maestría en Teoría Política y Social de la Facultad de Ciencias Sociales, Universidad de Buenos Aires, Argentina. 
 
En él tematizamos la noción de jurisprudencia como una operación social, colectiva y sin jueces en sus líneas más importantes y sencillas, así también en sus hallazgos más generales, siempre alrededor de la investigación que conducimos sobre Deleuze y el derecho. Participaran del debate posterior los professores Ricardo Laleff Ilieff (UBA), Virginia Zuelta (UNPAZ y UBA) y Carlos Vanegas Zubiría (Universidad de Antioquia, COL).
 
** Textos que les pueden interesar: 
 - Ahí es donde se pasa del derecho a la política: Deleuze y los grupos de usuarios (En castellano): https://www.academia.edu/100443436/Co... 
- A jurisprudência como categoria social (En portugués): https://www.academia.edu/52441821/COR... 
- Deleuze e os grupos de usuários (En portugués): https://www.academia.edu/76818501/COR...

Deleuze e o direito, ou Como os grupos de usuários fazem jurisprudência?

17 outubro, 2023


Este vídeo é o corte da palestra intitulada " Deleuze e o direito, ou como os grupos de usuários fazem jurisprudência?", feita no Workshop de Filosofia do Direito no Programa de Pós-Graduação em Lógica e Metafísica da UFRJ (PPGLM/UFRJ). O evento foi transmitido online no dia 16/10/2023, às 19h00, pelo You Tube, e organizado e mediado pelo Prof. Dr. Benjamim Brum (UFRJ). A íntegra pode ser conferida neste link, do @PPGLMUFRJ :    • Workshop de Filosofia do Direito - Mu...  

A longa trama de Junho

04 outubro, 2023

 1 Contra a linguagem

Gostaria de começar dizendo que ando muito incomodado com a primazia que ideias ligadas à linguagem têm tido no enquadramento de problemas políticos contemporâneos. No bojo dessas ideias, tudo se passa como se a ação não apenas estivesse umbilicalmente ligada à linguagem, mas decorresse dela. Como se as ações não passassem de efeitos de performances – e os corpos, efeitos de falas –, e num esgotado esquema no qual pensar é ligar palavras às coisas, as coisas forçosamente se seguiriam das palavras.

Como consequência desse modo de abordar os problemas, parece que tudo que precisaríamos seria inventar um novo vocabulário político para um mundo que já se encontra inteiramente pronto e acabado, com desafios definidos, com tensões já estabelecidas, e que uma nova linguagem política teria que vir resolver (sempre progressivamente, claro). Sinto, no entanto, que é impossível pensar ou viver uma política em que as coisas já estão dadas e apenas os nomes próprios faltariam.

O que geralmente observo, especialmente sob o regime da informação, é o inverso: as palavras se amontoam, intoxicam, excedem, e as coisas e os corpos é que não comparecem. Os eventos faltam. E hoje estamos aqui, falando de Junho, porque foi o último grande evento na agenda política por um outro mundo possível de que nos lembramos em muito tempo – não porque Junho foi capaz de inventar um vocabulário ou um almanaque de palavras adequadas. Pelo contrário, as palavras de Junho evocavam um mundo que faltava. Havíamos inventado o povo que faltava, ele estava nas ruas, mas apenas para descobrir que o que faltava talvez fosse o mundo. Talvez ele tenha existido por um breve instante. Quem saberá?

Nas últimas décadas, é possível que tenhamos dado poder demais às semioses, esquecendo que toda linguagem, toda informação e todo efeito de sentido procedem de agenciamentos tecnossociais e maquinações coletivas muito concretas das quais as palavras participam. De outra maneira, as condições que tornam possíveis os movimentos em um campo social ficam imobilizadas à espera da linguagem.

De modo que me é completamente impossível falar de Junho sob o ponto de vista da linguagem. Assim como Junho não foi, e nem se exaure, em um evento histórico – mas foi, por definição, um devir – inacabado e ainda aberto a prolongamentos ulteriores –, Junho não foi linguagem, mas uma maquinação coletiva de conteúdo-expressão que decorria de um agenciamento coletivo social múltiplo, febril, e em transe.

A esse ponto de incômodo, eu gostaria de acrescentar um outro. Por um lado, não nos cansamos (embora, devo confessar que eu já) de analisar Junho sob o ponto de vista da sua efetividade; isto é, seus fatos, seus eventos, seus empirismos nus de todo tipo. Mas também sob o ponto de vista do que Junho poderia ter sido e não foi (junho como potência, ou como virtualidade).

Esses dois cacoetes de análise muito provavelmente foram ferramentas úteis de decifração para o calor do momento, mas hoje, temo que eles nos afastem metodicamente, e por hábito, das duas únicas questões concretas que, a meu ver, relacionam Junho ao hoje e aos desafios do presente. As duas únicas dimensões que realmente importam, e que de certa forma se inspiram numa retomada da utilidade e desvantagem da história para a vida. Nova volta no parafuso de Nietzsche, que só reconhecia como justa a crueldade do devir que, como Junho, vinha rasgar o firmamento da História e da tradição.

Por um lado, há o que vou chamar de longa trama de Junho. Ela se confunde com a acumulação primitiva de condições de possibilidade, de lutas e de modos de vida múltiplos e contraditórios que confluíram na transversal multitudinária que Junho encarnou. Por outro lado, persiste o desafio verdadeiramente político, na dimensão da ação e da organização dos corpos e dos afetos, de dar linha a essa longa trama de lutas que confluíram e tomaram a transversal de Junho, e que, hoje, precisam procurar pontos de apoio concretos e de desenvolvimento que certamente já são outros. Junho é uma longa trama e uma transversal.

Então, falo das estruturas, que funcionam como meios de tensão da ecologia política de Junho, mas que, justamente ao tensioná-la, ao mesmo tempo acabam designando o conjunto concreto de condições que “possibilitaram os possíveis” de Junho. Em seguida, vou puxando de maneira fragmentária e incompleta alguns dos fios que compõem a meu ver a longa trama de Junho.

A acumulação das singularidades das lutas que encontraram em junho uma transversal que lhes permitia saírem de seus impasses de singularização e aceder a um terreno comum e incompleto de novas lutas. Todo o problema que subjaz à “longa trama de Junho” é o do acoplamento sociotécnico entre estruturas e singularidades; o do evento de composição social de uma “possibilitação dos possíveis”.


2 Estruturas

A longa trama de Junho é feita de duas dimensões: 1) Um complexo de estruturas reais, ao mesmo tempo globais e locais, em que essas lutas se apoiavam conjunturalmente, e de maneira antagonista colocavam as singularidades do campo social em tensão e em movimento; 2) A acumulação primitiva de lutas encampadas pelas singularidades que tentavam fazer bola de neve e multidão; lutas que precederam Junho e que, pouco a pouco, foram forjando uma “possibilitação dos possíveis” que Junho terminou por nomear, e sobretudo por encarnar, como um  efeito de expressão – e isso procede de uma articulação efetiva entre as dimensões do global e do local.

Talvez possamos localizar entre 2008-2009, na crise dos subprime loans americana, um primeiro foco no qual as primaveras globais (e Junho entre elas) puderam se apoiar. A crise de 2008, crise global de crédito e, portanto, também de confiança no sistema financeiro internacional, exprimia um descompasso na articulação entre duas metades do capitalismo global: a sua metade abstrata, financeira e imaterial (seu lado crédito) e a sua metade concreta, “real” e material (seu lado imóvel).

A ampliação e a aceleração na concessão de créditos imobiliários para devedores duvidosos levaram à percepção iminente de um default generalizado, e esta conduziu então a massivas injeções de liquidez nos mercados americano e global para evitar um colapso financeiro que poderia ter se seguido da quebra de bancos médios americanos, espraiando-se por todo o ambiente do mercado financeiro internacional.

Estas políticas ficaram conhecidas como quantitative easing, e não apenas nunca mais desapareceram da cena, irrigando o campo social de moeda sempre nova – seguida de ciclos de contracionismo –, como recentemente conheceram novo fôlego durante a pandemia do Coronavírus.

No caudal das ameaças de quebras e dos salvamentos financeiros (regime de monopolização dos lucros, mas de socialização dos prejuízos), produziu-se o Occupy Wall Street, um movimento contestatório e de massas que, em 2011, questionava a desigualdade de renda e riqueza nos Estados Unidos, e prometia ocupar o coração financeiro do mundo.

Todo esse contexto de crise leva a uma reorganização do próprio capital que, desafiado a crescer nas condições de estagnação ou do decrescimento dos anos 2008-2009, progressivamente se plataformiza (Srniceck, 2017). Neste ponto, estamos nos alvores do chamado capitalismo de plataforma. Enquanto assistimos morrerem as nossas comunidades preferidas no Orkut, um capitalismo de dados massivos vai se formar progressivamente nas enclosures de Big Data de grandes plataformas que ficariam conhecidas nos anos 2010-2012 como as FAANG (Facebook, Apple, Amazon, Netflix, Google). Como seu negócio era data driven – seja na área das redes sociais, produtos e bens de consumo, streaming e entretenimento online, mobilidade urbana etc. –, essas plataformas vão pervasivamente colonizando porções cada vez maiores do nosso tempo, relações, afetos e existências. A tal ponto, que elas se tornam plataformas de circulação e de logística social que subsumem porções cada vez maiores da vida social planetária, vetorializando suas ecologias (Wark, 2015).

Esse rearranjo do Capitalismo Mundial Integrado (CMI) fornece uma nova alavanca, concentracionária e quase-monopolista, da vida em geral. Reorganizando a circulação do crédito, dos fluxos monetários, dos imóveis, elas nos deixam em um novo patamar de abstração e nos impõem um novo ritmo de circulação.

Por outro lado, essa reorganização capitalista não pode ocorrer sem ao mesmo tempo preparar infraestruturas que, nos mais diversos continentes, vão servir para acelerar semioses de composição das lutas. A velha lição de Foucault: não apenas as resistências precedem as relações de poder, como estas fornecem as condições para multiplicação de resistências, e para a reversibilidade estratégica das próprias relações de poder. O impasse dos poderes pode até durar um tempo, mas não é páreo para a imaginação da liberdade.

Não é que o capitalismo prepare as condições de sua própria supressão, mas os rearranjos capitalistas não podem se estruturar sem fornecer brechas e pontos de apoio que permitam um agenciamento inesperado do desejo social de transformação que alimenta as lutas. Foi assim com o OWS, com o BLM (disparado por um tweet em julho de 2013 e alimentado pela sousveillances das câmeras dos celulares), com as primaveras árabes (que conheceram a censura pelas ditaduras) e com Junho. Lutas que se desdobraram de forma quase inconsciente e já em condições imediatamente algorítmicas (Finn, 2017). As redes fornecem algumas das infraestruturas em que as transversais de demandas e de lutas se prolongam umas nas outras. Em que a longa trama de junho, a cujas condicionantes sociais em breve chegaremos, se perfaz.

No Brasil, Junho será deflagrado precisamente por uma incompatibilidade entre o imaterial e o material, o financeiro e a circulação dos corpos – a logística do deslocamento metropolitano cotidiano. Quem formulou essa incompatibilidade e essa tensão em forma de problema político foi o MPL, catapultando o aumento do preço do transporte público (suposta necessidade fiscal do Município) e o impacto na renda e na vida real dos deslocamentos na cidade à condição de tensão política que, por parecer irresolúvel, mobiliza. Vemos aqui, o prolongamento da tensão da crise de 2008, entre fluxos financeiros abstratos (crédito), por um lado, e os imóveis/renda por outro, redefinida na tensão entre financiamento dos serviços públicos e circulação metropolitana – ou, se quisermos, orçamento e corpos.

O gatilho que dispara as transversais de mil outras lutas que compuseram Junho dá-se na tensão corpo-metrópole, e na mediação dessa tensão pelos serviços públicos que permitiriam a circulação das singularidades pelas estruturas urbanas. Mas remontar Junho ao seu disparador é encantar-se pela fagulha enquanto explode o barril de pólvora.

O barril são as lutas que se acumularam no Brasil dos anos que precederam Junho. As singularizações que vão habitar as estruturas da vida, os equipamentos coletivos, num crescendo de tensão antagonista, até levar o sistema do equilíbrio homeostático à metaestabilidade – um tipo de equilíbrio tenso, um estado pré-revolucionário (Simondon, 2020), em que a presença da menor partícula antagonista poderia deflagrar um salto quantitativo no estado do sistema.


3 Singularidades

Olhemos para alguns elementos das lutas que precederam Junho. Seus “antecedentes” que são, também, “a possibilitação dos seus possíveis”. É precisamente entre 2008 e  2012 – entre a crise dos subprime loans e o OWS – que uma série muito heterogênea de lutas agitavam o campo social no Brasil. Rememoro algumas, sem qualquer pretensão de esgotá-las, nem de estabelecer sua cronologia, ou avaliar seu peso contributivo.

Meu argumento é muito mais singelo, a contribuição milionária de todas as lutas. Ou seja, o argumento de que essas lutas, entre muitas outras, funcionaram, nos seus próprios termos, como gérmens que participaram da longa trama de Junho. Longa trama que, aliás, vai além de Junho, explode em novas transversais. O que importa é que essas lutas já eram experimentos singulares que tensionavam porções locais, estruturações parciais. Desçamos a essa usina dos corpos.

De 2009 em diante, o Brasil conheceu um novo momento de uma antiga luta pela memória e pela verdade sobre a ditadura civil–empresarial-militar brasileira. Essa nova vaga será precipitada, por um lado, pela decisão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos de processar o Estado Brasileiro junto à CIDH pelo desaparecimento forçado de dezenas de militantes da esquerda armada entre os anos 1960-1970 na Região do Rio Araguaia.

Um segundo desencadeamento se dá pela mobilização em torno do julgamento do STF sobre a constitucionalidade da Lei de Anistia (ADPF 153), para fins de isentar criminalmente agentes de Estado, geralmente militares da reserva das FFAA, responsáveis por graves violações de direitos humanos durante a ditadura.

Esses dois casos jurídicos, um internacional e outro constitucional, são secundados por disputas de sentido tanto nas mídias de massa brasileiras quanto conhecem repercussões e disputas nas redes – especialmente, em blogs e redes sociais nascentes, enquanto se popularizavam as ainda recentes, caras e precárias, conexões ADSLs tupiniquins. Elas nos faziam abandonar o ruído infernal das conexões discadas, e abriam o campo social à possibilidade de acelerar os acoplamentos.

Entre 2008 e 2010, a generalização das estruturas de redes sociais vai permitir uma circulação alternativa das lutas, que ganham novos eixos de organização como o Facebook e o Twitter, que também serviram como infraestruturas comunicativas para revoltas em rede durantes as primaveras – e foram censuradas e combatidas por governos ditatoriais no mundo árabe, enquanto foram amplamente policiadas nas democracias liberais (caso brasileiro).

Mas o Brasil dos anos 2008-2010 conheceu uma série de outras lutas, que se ramificaram internamente, e formaram essa longa trama cujos ecos puderam ser ouvidos, por vezes aos estilhaços, em Junho. Junto aqui apenas um punhado de fios soltos. Era o caso das pautas cosiddetti sobre os costumes.

Caso das pautas sobre a descriminalização da interrupção da gravidez (o direito ao aborto seguro), das marchas contra o estatuto do nascituro, das marchas em favor da descriminalização da maconha (as marchas da maconha). Ainda, era o caso das pautas de gênero, que não raro se imbricaram com as chamadas “pautas de costume”; mas, aqui, tenho em mente as marchas das vadias, inspiradas nas slut walks canadenses, que denunciavam a cultura do estupro e demandavam o direito de se vestir como bem se queira, sem por isso tornar justificável a violência machista.

Especialmente nos grandes centros urbanos, o Brasil destes anos também conheceu marchas pela desmilitarização das polícias, movimentos de mães de vítimas de  violência do Estado; lutas que, no Brasil, são inequivocamente atravessadas pelo antirracismo e pela denúncia da perseguição sistêmica das polícias às classes pobres, e às pessoas pretas e pardas.

Ao mesmo tempo, o Levante Popular da Juventude protagonizava esculachos, inspirados nos escrachos argentinos, denunciando torturadores nas portas das suas casas, renomeando espaços públicos, botando abaixo monumentos que contavam a história “dos que venceram”. E claro que há movimentos, marchas e paradas (como a parada do orgulho LGBTQIAPN+) que têm um curso mais longo na história. Aqui, tento me ater de maneira fragmentária e incompleta aos vetores de lutas que pareciam ser mais candentes naquele bloco histórico pré-Junho – e isso obviamente não invalida outras lutas, nem outras marchas.

Os anos seguintes serão acumulados de novos vetores, que eu reduziria didaticamente a três principais. O primeiro, socioambiental e eco-territorial, que abrange as lutas territoriais e indígenas, lutas anti-especistas e resistências situadas contra remoções; o segundo, ao autonomismo metropolitano e à dinâmica das ocupações urbanas; o terceiro, às lutas mais difusas e ambivalentes contra a corrupção sistêmica e o desencanto com a política de Estado.

Todas essas lutas se acumularam embaixo do tapete da maré rosa – isto é, sob os pés dos governos progressistas latinoamericanos, e em condições de relativa potencialização dos pobres – atingida por meio de políticas de crédito e acesso ao consumo, renda e habitação.

No entanto, essa potencialização dos pobres não apenas é tímida e insuficiente para reverter as miríades de desigualdades do Brasil profundo, como paradoxalmente acontece sob contradições sistêmicas graves desses mesmos governos.

No Brasil, foi o caso dos megaeventos (Copa do Mundo e Olimpíadas), da violência financeira e econômica organizada em consórcio com o Estado contra territórios e populações minoritárias; das remoções e gentrificações de áreas pobres; das questões energéticas e  ambientais que opunham o desenvolvimentismo como política de Estado à preservação ambiental e de modos de vida tradicionais (as usinas de Belo Monte e Jirau, projetos da ditadura desengavetados pela democracia de esquerda…); a contribuição das lutas metropolitanas, das populações indígenas, dos trabalhadores precários e intermitentes etc.

Relembrando essas lutas, não fazemos mais do que desemaranhar os fios mais evidentes de um imenso novelo. Cito essas poucas, e ainda assim muitas!, lutas com a intenção de mostrar-lhes que Junho acontece no caudal de uma longa trama…

Quero dizer, o campo social no Brasil pré-Junho poderia ser descrito como uma estrutura cujos equipamentos coletivos (urbanos, relacionais, semióticos, existenciais) já vinham sendo tensionados por uma multiplicidade dispersa de singularidades e lutas que Junho mais ou menos enfeixou nas suas transversais. Talvez a mais compreensiva de todas, em termos expressivos, tenha sido a plural transversal da sociedade contra o Estado, o grito Não nos representam!, que não apenas recusava partidos, mas exigia democracia real já, inspirado talvez no 15-M espanhol e nos seus indignados, mas também nos movimentos de libertação contra tiranias que explodiram nas ditaduras árabes.

Junho foi um efeito sensível e de percepção que consistia em se dar conta de que a estrutura que conhecíamos já não bastava à exigência múltipla do desejo social. Para sacanear com Lacan, havia um “mais-de-querer” no ar que parecia dizer ao Estado: “tudo isso, o Estado mesmo, essa política de vocês (e pra vocês, de castas), pra nós, é muito pouco”. E esse “nós” eram muitos e talvez incompossíveis nós. Muitos que a política do Estado não pode ser, senão por meio de uma ficção representativa que Junho estilhaçou em mil pedaços. Esse “mais-de-querer” socialmente difuso, circulando entre múltiplos e disparatados objetos nas redes e ruas, dava conta do estado de metaestabilidade, do estado verdadeiramente pré-revolucionário de Junho.

Agora temos, por assim dizer, a fagulha (o MPL) e o barril. As condições infraestruturais, mas também o conjunto das lutas sociais, coletivas e múltiplas, que se deixaram arrastar repentinamente, e sem que ninguém esperasse, na transversal de Junho.

As infraestruturas, mesmo as mais capitalistas, permitiram organizar-se nas redes para lutar nas ruas; franquearam uma dimensão em que essas singularidades conseguiam se recompor: a crítica aos megaeventos envolvia movimentos situados, territoriais, como a Vila Autódromo e a Aldeia Maracanã, e.g.; pautas anticorrupção (eram pautas antagonistas tradicionalmente identificadas com as direitas, mas com potencial de contaminação social, porque as políticas públicas e os serviços são efeitos de fluxos monetários e de investimento); a defasagem entre as promessas e a realidade: os megaeventos prometiam incrementos estruturais, ampliações logísticas, aumento de acesso a direitos e à circulação urbana. E isso contrastava com um sistema político de castas e de privilégios, bem como com práticas de corrupção que hoje sabemos sistêmicas.

As recusas representativas marcaram essa transversal. Uma linha de arrebentação comum a movimentos sociais prévios que tinham, nos seus próprios termos, muitas dificuldades em articular demandas de subjetividade, costumes, gênero, raça e classe, mas que eram atravessados por componentes múltiplos e comuns. Por isso, precisamos ver, sob as palavras de recusa – sua face noturna –, as ações de retomada do político pelo social – sua face diurna e iridescente.

Essa transversalização das singularidades se torna manifesta na fricção entre democracia real e fictícia, a representação; verdadeiro estado de alienação do desejo e do poder sociais à divisão política e representativa. Eis o que gera uma dinâmica de sociedade contra o Estado; uma demanda por dissolução, pelo fim das hierarquias, das  divisões e dos dimorfismos (o que, em Filosofia Black Bloc, chamei de anarquismo profundo de todos os corpos).


4 Dar linha à longa trama

Esta noite, eu quis refazer pelo menos uma breve porção, um minúsculo pedaço da longa trama de Junho, porque me parece que de 2013 para cá estamos num imobilismo generalizado, em que, politicamente, só somos capazes de efetuar falsos-movimentos.

As direitas se tornaram antissistêmicas para, paradoxalmente, conservar; as esquerdas se tornaram reformistas para, paradoxalmente, restaurar. E como efeito dessa dupla miragem em que nossos corpos sonham se mover, ambas tiveram sucesso em recaptar o político para dentro do Estado, involucrando-o. Um tempo em que defender as democracias representativas, salvando-as das castas de militares incompetentes para entregá-las a castas de políticos civis, fisiológicos e profissionais, parece revolucionário. Única alternativa, como  nos disseram.

Então, o meu recado é muito singelo. O que nos falta não é um novo vocabulário. É maquinar em termos concretos uma nova tensão entre estruturas e singularidades. Nosso trabalho tem de ser o de criar transversais e comunicações entre singularidades, a fim de superar os impasses de singularização nos quais boa parte dos movimentos sociais plataformados hoje se encontram, numa pane afetiva e corporal – em que não se consegue passar dos afetos às ações correspondentes – e as derivas linguísticas ou performáticas tampouco parecem estar ajudando a facilitar essa passagem.

Precisamos, então, compor ecologias germinais entre lutas dispersas, não cercadinhos de gentes em tudo iguais a nós mesmos, e também plataformas de organização e sincronização que nos permitam superar o impasse entre afetos e ação em que estamos. Impasse no qual nossos afetos, recaptados pelo there is no alternative dos dois polos magnéticos do possível político do hoje (a direita fascista e a esquerda “comunista demais”, pero no mucho), não conseguem se descarregar em ação. Essa é a dissociação que precisamos vencer de maneira transindividual, dando linha, talvez a algumas das linhas da longa trama de Junho. E então vamos poder encontrar outra trama.

Murilo Duarte Costa Corrêa

* Originalmente publicado em Universidade Nômade Brasil.

A billionformação dos mundos: Musk, Altman e o cão na vitrine

26 julho, 2023


O úmido e o vivo

Olho a noite lá fora e recolho tudo o que tenho. Dirijo-me à sentinela do quinto andar da Biblioteca Nacional Mariano Moreno, situada numa bela Babel brutalista, que um dia foi dirigida por Jorge Luis Borges, e hoje parece dirigida por seguranças terceirizados.

– “¿Te retiras?”, disse ela apanhando a caneta.

– “Sí, me retiro.”, e lhe estendo minha credencial. Ela anota 19:04, e eu lhe digo “Gracias, buenas noches”. Escuto um “A vos” enquanto caminho na direção do locker número 08.

Encasacado e de mochila nas costas, desço pelas escadas até o térreo. Lá, me aguarda uma catraca eletrônica, onde deposito o cartão que libera minha saída. Um enorme vão livre e dois lances de rampas depois, um pequeno trecho da Agüero me faz desaguar na Gen. Las Heras.

Caminho da Recoleta até o Alto Palermo. Ando por Las Heras até cruzar a Sánchez Bustamante. Logo me deparo com uma loja. Espelhos e molduras. Síntese de uma civilização global, as suas imagens narcísicas e os seus enquadres sensíveis prêt-à-emporter.

Na vitrine cheia de espelhos, em que os passantes costumam parar para tirar selfies, vejo que dois olhos me olham de volta lá de dentro. Hesito por um momento. Não consigo saber se o que me olha é uma estátua ou um cão. Tiro uma foto.


Sinto uma pequena vertigem. A aceleração de uma micro-alucinação perceptiva embaralha os sentidos. Preciso olhar mais uma vez, e outra vez, e fixamente dentro daqueles olhos. Preciso examiná-los para descobrir ali uma doce umidade, e perceber que aqueles olhos me olham de volta com vivo interesse. Um átimo depois, como mágica, a estátua começa a menear a enorme cabeça, como se tentasse captar o cheiro do estranho através da vidraça. As orelhas balançam como um feltro, que quase sinto tocar.

Eppure si muove!, pensei, e ao invés de evocar Galileu, minha cabeça foi parar muitos séculos antes, e me lembrei de Aristóteles. Embora hoje saibamos que as plantas também viajam no espaço à sua maneira, ele atribuía ao movimento, e à capacidade de locomover-se, a diferença entre a vida vegetal e a animal.

E olhando mais uma vez os seus olhos viscosos, o seu brilho incomum, me veio à mente a anamnese platônica; a metáfora do olho que se reconhece, e ao Ser, olhando-se por dentro, ou ao reconhecer a própria imagem refletida no olho de um outro. As duas mediações do “conhece-te a ti mesmo” – uma obsessão que não era nossa, mas a História mundial acabou por torná-la. Antes disso, talvez a obsessão fosse “conhece os mundos”, ou não houvesse obsessão – mas quem saberia?

E então me lembrei de Borges, em Deutsches Requiem, dizendo que todos os homens nascem aristotélicos ou platônicos; que não há debate abstrato que não seja um momento da eterna polêmica entre Platão e Aristóteles: “através dos séculos e latitudes”, escreveu ele, “mudam os nomes, os dialetos, as faces mas não os eternos antagonistas.”

Para mim, era substância demais. Ali, face a face com o indeterminado, eu não me sentia nem platônico, nem aristotélico. Não reconhecia nada. Nem a estátua, nem o cão, nem a mim mesmo no visgo escuro dos seus olhos úmidos. Não havia espelho, nem moldura. Nada de anamnese, ou hilemorfismo para encher os quadros. Ali estávamos, o cão e eu, em meio a outra coisa – como são os pequenos acontecimentos. Era só um visgo escuro, em cujo centro calmo eu via boiar um brilho especial no meio da noite. Era só um meneio curioso, uma cabeça imensa.


Agarrando usuários pelo bolso
 

Poucas horas antes, eu havia lido que Sam Altman, CEO da OpenAI, e Alex Blania, da coinvestida startup UBI, haviam lançado um batalhão de orbes pelo mundo para escanear a íris das pessoas. Em troca, elas receberiam tokens de uma criptomoeda que foi batizada de Worldcoin (WLD). Uma criptomoeda baseada em tecnologia blockchain, negociável a mercado, e que poderia subsidiar uma renda básica universal – só não se sabe como.

A aposta é de que, nos próximos anos, na medida em que a IA evolua para uma Inteligência Geral Avançada (AGI, em inglês), a IA deve criar um salto de produtividade e uma tal disrupção nas cadeias de remuneração das atividades humanas que não seria nem justo, nem moral, deixar de dar um fim à pobreza num mundo que enriquece cada vez mais.

Seus propósitos seriam, portanto, distributivos e anticocentracionários quanto à riqueza da IA. Nas palavras de Altman, “Se nós temos uma sociedade suficientemente rica para dar fim à pobreza, então nós temos a obrigação moral de encontrar um jeito de fazer isso”.

Mas os orbes, na verdade, são máquinas de certificação identitária. Na medida em que as IAs se desenvolvem a ponto de passar no teste de Turing, se torna cada vez mais difícil saber quando estamos diante de um humano ou de um não-humano, de um vivo ou de um não-vivo. Sobretudo, fica difícil saber com quem estamos falando, ou com o quê.

Ao invés de prolongarmos as proliferações dessa indeterminação, os orbes de Altman e Blania se propõem a verificar e autenticar a humanidade de cada um biometricamente. Assim que alguém encontra um orbe em New Delhi, Londres, Pretoria ou São Paulo, escaneia sua íris, recebe uma identificação única, um punhado de criptomoedas, e passa a ser um “humano verificado”. Fizeram até camisetas. Altman jura de pés juntos que a OpenAI não guarda dados das íris das pessoas, e dá a elas a opção de estocá-los de forma criptografada.

Enquanto isso, Elon Musk preparava um avanço no seu projeto de fazer do Twitter um Everything App. Musk rebatizou a plataforma objeto de uma aquisição hostil, no valor de 44 bilhões de dólares, matando a logo do passarinho. A logo havia sido criada em 2010 em homenagem a Larry T Bird, jogador do Boston Celtics.

Chega a ser irônico pensar que as fazendas de painéis solares, que estão no horizonte das alternativas de energia “limpa” para abastecer, entre outras coisas, os Teslas de Musk, sejam responsáveis por matar dezenas de milhares de pássaros nos Estados Unidos todos os anos.

Trágicas ironias à parte, Musk quer mais do que matar passarinhos azuis com o rebranding que transformou o Twitter em X Corp, e os tweets em xs. Ele quer empurrar a plataforma e seus usuários para dentro de uma nova cena de competição em que já estão o WeChat chinês, o PayTM indiano e o GoJek indonésio.

Embora o X de Musk pareça uma cópia ocidental de lógicas plataformadas de subsunção financeira e biopolítica que já existem no Leste asiático, Linda Yaccarino, CEO da X Corp., definiu X como o estado da arte dos Everything Apps: “X é o futuro estado de interatividade ilimitada – centrada em áudio, vídeo, mensagens, pagamentos e serviços bancários – criando um marketplace global para ideias, bens, serviços e oportunidades”.

Como a Meta, de Zuckerberg, X é a tentativa de fazer um mundo, mas um mundo não necessariamente à parte deste. Porque ele se instancia nos corpos, nos usuários, no seu tempo livre, na sua produtividade e força de invenção, bem como no valor dos efeitos de rede; estes, que podem dar valor, por exemplo, a uma moeda tirada do nada.

É o que, de repente, fez a Worldcoin, de Altman e Blania, adquirir alguma relevância. A partir de um empuxo neocolonialista que recrutou seu primeiro meio milhão de usuários em países de Terceiro Mundo por meio de táticas que foram descritas como “práticas de marketing enganosas”, e que “falharam em obter consentimento informado” dos usuários, o que começou como “uma base de dados biométricos dos corpos dos pobres” começa a se generalizar para todo o globo.

Isso porque a própria estratégia de Altman e Blania é fazer bola de neve com os efeitos de rede que a Worldcoin pode ajudar a desencadear: “o primeiro milhão de pessoas, os early adopters, as pessoas mais avançadas, convencem os próximos 10 milhões. Então, os próximos 10 milhões estão próximos dos normies [a subjetividade online mainstream, o “gado” da Internet]. Eles convencem os próximos 100 milhões. E estes são realmente os normies que convencem os outros poucos bilhões”, diz Blania.

Toda estratégia de negócios bem-sucedida na era das redes é, na verdade, uma gigantesca operação de silogismo social. Uma grande engenharia cibernética para se normalizar no socius, que começa levando algumas dezenas de milhares de pessoas a se engajarem e aceitarem as premissas da sua operação (geralmente, pobres e racializados do Terceiro Mundo). Então, com a mediação das ações de marketing adequadas e ajustadas ao público que se quer subsumir, os efeitos de rede fazem o resto, conseguindo embarcar uma boa parte do resto do mundo na sua propagação contaminante.

Uma moeda, como a Worldcoin, só adquire valor porque algumas pessoas a aceitam e acreditam nela; porque lhe atribuem valor, e imputam suas crenças a um instrumento de circulação social. Um pouco como as pessoas acreditam nas previsões oraculares de Musk sobre o Bitcoin. Basta que ele “tuíte” – perdão, que ele “éxe” –, e os efeitos de rede e o comportamento de rebanho dos seus seguidores funcionam como gigantescas alavancas distribuídas. Elas se encarregam de fazer com que suas profecias se tornem realidade.
 

Isso só acontece porque o que instancia o valor de uma moeda, tirada ou não do nada, é o tecido vivo e micrológico das relações estruturadas e estruturáveis entre os corpos e os vivos. Os conteúdos das suas crenças e desejos. A maior ou menor confiança que se atribui a ela, como Bruno Cava e Giuseppe Cocco explicaram em A vida da moeda.
 

O que Altman e Musk sabem bem – a par de seus primos asiáticos WeChat, PayTM  e GoJek – é que não há forma melhor de agarrar usuários do que pelo bolso. Não apenas distribuindo free money por dez segundos de scan da sua íris, mas sendo o gatekeeper dos fluxos financeiros dos usuários, seu garantidor e seu milieu privilegiado de transações.


A billionformação dos mundos


Ao contrário do que afirmam bitcoiners e fintechers, não caminhamos para uma sociedade desbancarizada, mas na direção da vertiginosa multiplicação e dispersão da bancarização e da financeirização. A horizontalização das moedas e das finanças, facilitadas por sua abstração e digitalização, andam de mãos dadas com as desterritorializações que se impõem às atividades dos corpos e dos vivos. Então, não é que os bancos desapareçam; nem que os bancos estejam por toda parte. É que tudo vira banco, inclusive nós mesmos.

Mesmo os trabalhadores precisam gerir sua carreira como ativos de capital humano, suas férias e seu tempo livre como bancos de horas, sua aposentadoria e inatividade como uma reserva de ativos para o futuro – e que não pode acabar enquanto se estiver vivo. E, nas horas vagas, os usuários ainda pilotam os aplicativos de seus bancos para gerir recursos, fazer investimentos, adquirir seguros, pagar boletos, relatar golpes cibernéticos, aderir a ofertas etc.

Na medida em que atividade, dinheiro e informação se tornam fluxos intercambiáveis e fungíveis, ficamos muito próximos do que William Burroughs descrevia em The limits of control. Há um grupo de controladores que tenta governar pelo poder do dinheiro. E mil outros grupos de usuários que não param de fugir. De passar de uma plataforma a outra. Criar fakes. Bots. Hackear usos. Cancelar contas. Deletar dados. Desertar. Migrar para outros espaços de assemblage. Voltar. E reencontrar tudo alterado.

Por um lado, o poder do dinheiro não pode ser violento. Ele é soft, modulador, um ourives da liberdade individual. Isso não faz a violência desaparecer, mas implica uma nova articulação entre dinheiro, poder e violência e, possivelmente, uma distribuição de agenciamentos desiguais entre territórios centrais e periféricos. Fazer um ecossistema de relações e fluxos consistir numa nova Umwelt, na criação de um mundo circundante, é a operação de controle que anima todas as demais.

Como nos vídeos do Mr. Beast, um jogo é arranjado e escolhe os seus competidores, que estão lá por livre e espontânea vontade, e vão se submeter a seja lá o que for que o jogo proponha – porque conservam a crença de terem uma oportunidade de jogar e ganhar, mantendo a liberdade de sair a qualquer momento.

Mas sair é perder, ou deixar de ganhar. Então, o fear of missing out governa. O dinheiro tem poder, não só porque ele cria uma estrutura, institui as regras do jogo, inventa os mundos e os informa, mas porque ele canaliza os fluxos, apela à sua liberdade, os faz ceder, tenta ganhar dos corpos pelo cansaço.

Não sei se estamos saindo do capitalismo de plataforma, ou se já atingimos uma etapa verdadeiramente monopolista, que Nick Srnicek chamou de “Platform Wars”. O que a atual fase do desenvolvimento do capitalismo deixa claro são duas coisas. Primeira, que vivemos a época da billionformação dos mundos. Não é, nem nunca foi, sobre terraformar Marte, ou a própria terra – mais e mais informe a cada ano do Capitaloceno. Sempre foi sobre billionformar os mundos. Sobre o poder do dinheiro e o poder dos grupos de controle.

Segunda, que a billionformação dos mundos não nos deixará sair das antigas hierarquias e dimorfismos, nem das racializações, embora suas técnicas contenham (no duplo sentido de possuir e limitar) o potencial para produzir esse êxodo. Ainda que, nas técnicas de controle, nada esteja determinado de uma vez por todas.

Isso fica claro nos orbes autenticadores de humanos de Altman. Nos everything  apps que já estão entre nós. Os controladores não podem deixar espaços nos controles, como a indeterminação que faz a percepção hesitar entre o deserto apagado do olhar de uma estátua e os olhos úmidos e vivos de um cão. Precisamos saber, sempre, em que mundo estamos. Precisamos saber de onde procede o que estamos vendo, e com quem, ou com o quê, estamos falando.

Que os índices biométricos e, no fundo, os corpos, funcionem como as instâncias que permitem verificar os humanos é prenhe de consequências. Basta lembrar que Roberto Esposito, em Persons and things, afirmou que o corpo era precisamente o limiar de indeterminação entre pessoas e coisas que tornava possível determinar a diferença significante entre uma pessoa e uma coisa na experiência do direito romano antigo.

O corpo de um escravizado, então, pode ser mais coisa do que pessoa, e estar suscetível à apropriação e à circulação em dado regime. O corpo de um cidadão pode ser mais pessoa do que coisa, e ter seu corpo e sua personalidade gravado pela indisponibilidade de certos direitos sobre o próprio corpo.

Tomando os corpos como substância estável, toda natureza e todo artifício podem ser verificados num dimorfismo, e isso nos deixa a sós com os ecossistemas da billionformação dos mundos. O sistema só diz “sim” às alucinações perceptivas programadas, e nenhuma delas muda nada. Nenhuma alteração de mundos é permitida. Assim como os controles, o corpo aparece como a sede da determinação dos dimorfismos e como leito de indeterminação que poderia levar a novas lutas.

Por isso, deveríamos nos perguntar o que acontece quando tudo devém-banco, ou fluxos financeiros livres. Quando a atividade do vivo, a informação e o dinheiro se tornam perfeitamente intercambiáveis. Acontece a billionformação dos mundos. Bilhões são gastos na esperança de fazer trilhões concorrerem para dentro do mesmo meio, da mesma plataforma, participando constitutivamente de um mesmo ecossistema de relações a que o dinheiro dá consistência.

Já não é mais o capitalismo liberando fluxos com uma mão e axiomatizando com a outra. São os bilionários liquidando o mundo com uma mão e destilando mundos com a outra.

A única boa notícia, que Burroughs percebeu com precedência, é que embora o dinheiro tenha poder, os controles não são totalmente determinados pelo dinheiro. Aliás, nem o dinheiro é determinado pelo dinheiro – mas pelas relações e pelos corpos, pelas curvas de crença, confiança e desejo.

Isso insere um vetor de indeterminação social e pragmática na equação dos mundos billionformados que estão na soleira das nossas portas. Mais que isso, o impasse dos controles, sob pena de se autossuprimirem, é o controlar sem jamais poderem ir até o fim do domínio da vontade, ou na automação do desejo.

Para mim, bastou o encontro com um cão na vitrine. Mas eu me pergunto que evento de percepção será necessário para entendermos que aí está toda a política do nosso tempo. As lutas pelos ritmos das modulações da vida e dos mundos. E que somos nós contra eles. Os grupos de usuários contra o grupos dos controladores.